Homicídio é "matar alguém". A definição é perfeita.
Como prometeu no pronunciamento de domingo, a presidente Dilma sancionou
lei que cria categoria própria de homicídio qualificado, punido com até
30 anos de reclusão: o assassínio de mulheres (feminicídio), por razões
de gênero, elevado a crime hediondo.
Para o governo e para o Congresso, é agenda positiva em meio a um
turbilhão de más notícias e desnorteio. Como tem aparência progressista,
agrada aliados e inibe críticos.
Mas é um desastre técnico. Conspira contra o equilíbrio, a equidade e a
lógica do Código Penal. Conservadores ou liberais, códigos deveriam ser
estrategicamente reformados, não mutilados por alterações irracionais,
desconexas.
A ineficácia foi percebida pelo editorial exato da Folha. O
preconceito de jurados e juízes –que ainda permite a impunidade do
homicídio contra a mulher em redutos atrasados– não desaparece por toque
de mágica. Vai se abrigar em jurisprudência reacionária formada em
torno da aplicabilidade da própria norma. A redução de violência contra a
mulher depende de outras políticas públicas.
A partir de agora, homem que matar mulher por razões de gênero (por
envolver "violência doméstica", "menosprezo" e "discriminação") tem
tratamento, em tese, mais drástico do que o dado à mulher que matar
homem pelas mesmas razões. Sim, as duas hipóteses são previsíveis no
horizonte humano, ainda que homens matem mais mulheres do que mulheres
matam homens.
A lei aumenta a pena quando o delito contra a mulher se dá "nos três
meses posteriores ao parto". Difícil compreender por que o crime seria
mais grave do que o praticado após o quarto mês do nascimento.
Não faz sentido compartimentar o "alguém" do artigo 121 em razão da
vulnerabilidade da vítima. Violentaram o princípio da universalidade do
homicídio abrindo caminho para outras "demandas" semelhantes.
Matar homem não é menos grave do que matar mulher. Matar índio ou negro
não é mais grave do que matar branco. Matar pobre não é mais grave do
que matar rico. Matar criança não é mais grave do que matar adulto.
Matar policial não é mais grave do que matar preso. E vice-versa.
No Brasil, a pena é maior (homicídio qualificado) em razão do motivo
(fútil, torpe), do meio empregado (asfixia, tortura), dos modos de
execução (traição, emboscada) ou do fim (ocultar outro crime, assegurar a
impunidade). O crime por menosprezo de gênero (ou raça) não precisa ser
particularizado.
Não é a primeira vez que valores "politicamente corretos" corrompem a
igualdade jurídica. A pena de injúria é mais severa (três anos de
prisão) quando envolve raça, cor, etnia, religião ou origem. E a
orientação sexual? Ou a ofensa a homossexuais não merece agravamento?
O Código Penal abriga uma coleção de incongruências. Xingar um senador
de 60 anos de "corrupto, ladrão" pode resultar em pena de um a seis
meses, com um terço de aumento; para quem chamá-lo de "velho safado,
gagá", a condenação pode alcançar três anos.
Dirão que as mexidas no Código Penal não têm importância diante das
gigantescas dificuldades que o país atravessa na economia, na governança
e no bem-estar. É que demagogia também atrapalha.
lfcarvalhofilho@uol.com.br
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