Há 30 anos, numa explosão temperamental, por horror ao Sarney, detonei o melhor dia de minha vida pública.
Senhora,
Não gosto do seu governo, como vosmecê não gosta do meu. Quando eu
assumi a Presidência, em 1979, meus serviços de informações acompanhavam
seus passos. A senhora tinha 32 anos, saíra da cadeia, passara pela
Universidade de Campinas, perdera um emprego em Porto Alegre e
continuava militando na esquerda. O SNI dizia que estava metida com uma
tal de Junta de Coordenação Revolucionária. Veja como são as coisas que
nos contam, a ameaça dessa JCR, à qual estaria ligado também o Fernando
Henrique Cardoso, era um delírio de meia dúzia de generais.
Volto a escrever-lhe sobre nosso temperamento explosivo. (Só eu, a
senhora e o maluco do Jânio Quadros tivemos essa característica.) Desta
vez falarei da explosão que tive nas 24 horas seguintes à manhã de
quinta-feira, 14 de março de 1985. Daqui a pouco completam-se 30 anos
desses acontecimentos e acredito que essa memória tenha alguma utilidade
para a senhora.
Eu havia bloqueado a campanha de Paulo Maluf à minha sucessão, e
Tancredo Neves elegera-se pelo voto indireto. Tomaria posse na manhã de
sexta-feira, dia 15. Seria o primeiro presidente civil depois de cinco
generais. Eu sabia que o Tancredo estava doente. Ao final da manhã soube
que ele precisaria ser operado depois de tomar posse. As coisas se
aceleraram e, na noite de quinta-feira, ele havia sido levado às
pressas, de pijama, para o Hospital de Base de Brasília. A quem eu
entregaria a faixa na manhã seguinte? Ao José Sarney?
Nem morto, pois detestava-o. Poderia transferir o cargo ao meu vice, o
Aureliano Chaves, mas aí a coisa ficava pior, pois detestava-o ainda
mais. Depois eu soube que o Aureliano estava pronto para sair no braço
comigo caso eu lhe fizesse alguma descortesia durante a cerimônia.
Duvido.
Decidi que não entregaria faixa nenhuma. Ia-me embora do palácio e saí
pela porta lateral. Senhora, ouvi meu fígado e arruinei a lembrança que
os brasileiros têm de mim. Nenhum dos meus colaboradores chamou-me num
canto para dizer que estava cometendo uma maluquice. Conto-lhe isso
porque a senhora sabe quantas vezes lhe faltaram vozes para recolocá-la
no caminho da razão. A gente explode, todo mundo fica calado e depois
ficamos com a conta.
Imagine que alguém tivesse corrido o risco de me desafiar. Talvez eu
tivesse cedido. Disso resultaria a cena do quinto general entregando a
faixa ao Sarney. Seria o indiscutível coroamento da abertura política.
Fui o presidente que assinou a maior anistia da história nacional.
Presidi com lisura a eleição direta dos governadores. Leonel Brizola
ganhou no Rio, Franco Montoro em São Paulo e Tancredo em Minas. Encerrei
o ciclo de presidentes militares entregando o poder a um político que
militava na oposição. Quem fez isso? Em ponto menor, só o Floriano
Peixoto em 1894, mas outro dia ele me disse que não tinha pelo Prudente
de Morais o apreço que eu tinha pelo Tancredo.
Daqui a dois meses, todo mundo lembrará da posse do Sarney, do fim da
ditadura e do general que saiu pela porta lateral do palácio. É a vida, e
eu não posso culpar ninguém pela minha decisão. Outro dia um puxa-saco
disse que resolvi não subir no meu próprio pedestal. Coisa de puxa-saco,
mas ele talvez tenha razão, porque eu sei que me deixei levar pelo
temperamento.
Recomendo-me ao seu neto Gabriel e despeço-me.
João Batista Figueiredo
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