Várias publicações já utilizam programas
capazes de escrever notas jornalísticas a partir de bancos de dados;
histórias formuladas ao gosto do usuário podem levar a estreitamento da
visão de mundo dos leitores, alerta especialista
Bots, a mosca na sopa dos jornalistas em tempos de internet
“O fim do jornal é uma das coisas mais previsíveis do nosso futuro. Os
únicos que ainda não sabem disso são os jornalistas”. Assim o político e
empresário editorial italiano Gianroberto Casaleggio iniciou uma
palestra em novembro de 2014 sobre o futuro da imprensa, aniquilada pelo
chamado “robot journalism”. Em breve os jornalistas serão substituídos
por “bots”, softwares capazes de escrever artigos jornalísticos com
rapidez e talvez até com mais exatidão do que os profissionais de carne e
osso.
Vários jornais, sobretudo as publicações online, já abordaram o tema em
artigos e reportagens, em geral em tom alarmista. Títulos como “Robôs
roubam o trabalho de jornalistas” ou “O caminho da morte do jornalismo”
são bons para conseguir cliques, mas os textos acabam oferecendo
análises superficiais. Muitas são as implicações que este fenômeno
poderia ter para os profissionais e também para as pessoas que buscam
informação na internet.
No fundo, “o ‘robot journalism’ é o novo nome de um problema debatido
desde os anos 1990, quando surgiu o Daily Me, um jornal virtual
personalizado”, lembra Stefano Epifani, professor de gerenciamento de
mídias sociais na Universidade La Sapienza, em Roma. Seria apenas a
versão 2.0 do secular debate sobre a relação entre o ser humano e as
máquinas.
A tecnologia para a escrita automática deve muito aos especialistas em
inteligência artificial da Northwestern University de Illinois, nos
Estados Unidos. Larry Birnbaum e Kris Hammond, professores de
informática e fundadores da start-up Narrative Science, inventaram
Quill, um dos primeiros sistemas para a produção de textos breves sem
intermediação humana. “Baseado em algoritmos que respondem a funções
específicas, o software começa com a importação de dados – especialmente
sobre finanças ou esportes, que se limitam a reportar nomes e números.
Pode-se utilizar desde bancos de dados de governos até o Twitter, como
já acontece no caso de análises de redes sociais em períodos de
eleições”, explica Alessio Cimarelli, cientista de dados e co-fundador
da rede Dataninja.
Listas, tabelas e gráficos são então convertidos de modo que sejam
funcionais a uma construção narrativa. O software constrói frases
simples, mas legíveis, com linguagem técnica ou informal, coerente com a
linha editorial do jornal que solicita o serviço. O resultado é uma
nota com um número de palavras que varia entre 150 e 300. E todo o
processo é realizado em poucos segundos, automaticamente.
Em julho de 2014, a Associated Press, uma das maiores agências de
notícias do mundo, causou polêmica ao anunciar a adoção do Wordsmith, um
sistema para a produção de notícias sobre os resultados trimestrais das
sociedades cotadas em bolsas de valores. “Durante muitos anos perdemos
tempo mastigando números e remanejando as informações fornecidas pelas
empresas, publicando cerca de 300 relatórios a cada trimestre”, explicou
o editor-chefe de Economia da AP, Lou Ferrara. “A partir de agora
podemos produzir até 4.400 destes relatórios.” Para confeccionar tantas
notícias seriam necessárias dezenas de jornalistas que se ocupassem
exclusivamente desta tarefa, a custos exorbitantes.
Apenas entramos na era digital dos Big Data, que aumentarão
exponencialmente a quantidade de dados disponíveis, dos quais nós
jornalistas não podemos fazer proveito sozinhos. Um computador pode
analisar enormes quantidades de dados e desempenhar outras tarefas ao
mesmo tempo, sem se cansar. Pode substituir a equipe dedicada às
notícias e fornecer quase 15 vezes mais informações a um preço bem mais
baixo.
Não por acaso, muitas publicações norte-americanas, entre elas
Huffington Post, Sports Illustrated, Business Insider e ProPublica
decidiram experimentar o “robot journalism”. “Queremos usar nossos
cérebros e nosso tempo de maneira mais eficiente”, comenta Ferrara, da
AP. Segundo alguns profissionais, os bots podem ser algo positivo: os
redatores poderiam renunciar a trabalhos alienantes e se concentrar em
conteúdos mais complexos, como reportagens investigativas, resenhas e
artigos opinativos.
“As histórias que os bots podem escrever hoje são, francamente,
aquelas que os humanos odeiam ter de fazer”, comenta Kevin Roose,
ex-redator do jornal norte-americano The New York Times. “Se o Times
tivesse usado um algoritmo para os relatórios trimestrais em lugar de
passar a tarefa para jovens jornalistas, eu teria podido investir minhas
manhãs em trabalhos que exigissem real inteligência humana.”
A maior parte do material produzido em portais jornalísticos online
consiste em artigos breves e facilmente legíveis, relativos a fatos e
declarações específicas. O advento da internet significou um aumento do
espaço e uma diminuição do tempo, assim a repentina evolução da
informação online se baseia na proliferação e na tempestividade de novos
conteúdos. Muitas pessoas se sentem hoje sob um bombardeio midiático de
notícias de última hora.
Não é isso que a maior parte dos usuários
espera da internet. “O que lhes interessa são interpretações dos fatos
que respeitem as opiniões e os gostos deles”, acredita o professor
Epifani. “Sérias ou divertidas, medíocres ou de qualidade, o importante é
que sejam bem feitas e, por que não, personalizadas.”
Jornalistas no Parlamento Europeu, em Bruxelas
Não por acaso a maior parte dos jornais online dão amplo espaço a blogs
pessoais ou escritos por personalidades relevantes que, em muitos
casos, têm mais seguidores do que a própria publicação que as hospeda. É
na onda destas tendências que se observam o aumento de artigos cada vez
mais longos e aprofundados com relação ao potencial multimídia (o
chamado “long journalism”, que faz uso de vídeos e imagens de impacto), a
difusão de conteúdos mais narrativos (o “storytelling”, ou “contação de
histórias”) e o sucesso de projetos editoriais como o Huffington Post,
primeiro a investir pesado em blogs, e o BuzzFeed, fenômeno com 300
milhões de visitantes ao mês que publica conteúdo engraçadinho em
formato simplista mas altamente legível.
A internet ofereceu novas oportunidades e derrubou barreiras que já
pareceram intransponíveis. As grandes publicações impressas entenderam
que na web 2.0, das redes sociais e do comércio eletrônico, as notícias
por si só não servem mais. Também por isso, não obstante os bots e os
tabus, a profissão de jornalista não morrerá. Pelo contrário: o que fará
a diferença será tudo aquilo que uma máquina não pode oferecer –
qualidade, originalidade e capacidade de adaptação. O mundo da
informação, portanto, terá fronteiras menos rígidas, mas será mais
seletivo, oferecendo a quem o habita a oportunidade de se reinventar,
abandonando esquemas obsoletos.
Com a crescente disponibilidade de dados, inevitavelmente as notícias
vão aumentar, mas com outros objetivos para além do simples desfrute do
usuário. Graças às visualizações e à propagação através das mídias
sociais, produzirão elas mesmas dados que outro sistema poderá analisar.
Segundo o sociólogo bielorrusso especialista em novas mídias Evgenij
Morozov, professor da Universidade de Stanford, nos EUA, será
“jornalismo feito por bots para bots”.
A demanda de conteúdos quentes a que os jornais estão buscando
responder, porém, se coloca em um contexto mais amplo. “Hoje os usuários
se preocupam com a tutela da própria privacidade e com a proteção
contra vírus e spam, mas também querem receber informações e visualizar
conteúdos mais pertinentes aos seus interesses”, explica Cimarelli.
“Também por isso o Twitter e o Facebook modificaram recentemente os
algoritmos que determinam o que vemos em nossas linhas do tempo.” Assim
como o Google, estas redes construíram um modelo de negócios baseado nos
dados pessoais que os usuários disponibilizam enquanto fazem buscas e
compras na internet e interagem nas redes sociais.
Com estas informações, as gigantes da web são capazes de proporcionar a
cada usuário conteúdo selecionado com base em seus interesses. E quando
se trata da publicidade personalizada, um anunciante que busca um alvo
preciso paga pelo consumidor que pode alcançar. Se já aconteceu de você
buscar informações sobre uma viagem na internet e depois ser bombardeado
por anúncios de hotéis e companhias aéreas, você sabe do que estamos
falando. Este é o trabalho dos bots, os mesmos da escrita automática. As
gigantes da web, portanto, poderiam ir além da publicidade e
desenvolver um serviço de conteúdo informativo voltado para cada pessoa.
O algoritmo que identifica o conteúdo a ser visualizado poderia também
criar as notícias.
“Em 2025, 90% das notícias lidas pelo público serão geradas por
computador e a quantidade de material publicado crescerá enormemente”,
afirmou o fundador da Narrative Science, Kris Hammond. “Chegará o dia em
que haverá somente um leitor para cada artigo”. Para o vice-presidente
da Automated Insights, Adam Smith, “a partir dos mesmos dados, podemos
formular milhões de histórias diferentes” com base nas necessidades de
cada destinatário. E não só: os artigos chegariam diretamente ao
usuário, que por não precisar buscá-los teria um papel cada vez mais
passivo e acabaria recebendo notícias das mesmas fontes, em consonância
com suas opiniões.
“Um círculo vicioso”, define Morozov. “Muitas pessoas poderiam consumir
informações de baixa qualidade e receber somente poucos indícios da
existência de um mundo diverso e plural.” Com a impressão de não estar
perdendo nada graças à “natureza comunitária das mídias sociais”, que
limita a interação dos usuários ao círculo mais estreito de amigos e
pessoas que seguem, amalgamando opiniões similares.
Um dos mais destacados críticos do internet-centrismo, Morozov
conjecturou sobre as consequências que poderiam advir de sistemas
avançados de “robot journalism” nas mãos de empresas como Google e
Amazon. “A verdadeira ameaça vem da nossa recusa em investigar as
consequências sociais e políticas de viver em um mundo que impossibilita
a leitura anônima de qualquer conteúdo. Um mundo que anunciantes e
gigantes da web não veem a hora de ocupar, em que será mais difícil
preservar o pensamento crítico e pouco convencional”, soterrado pelo
senso comum cuja formação estará cada vez mais nas mãos destas grandes
corporações.
Uruguai aprova Lei de Meios e fará reforma do setor de mídia em 2015
Jornal ultraortodoxo judaico apaga líderes femininas de fotos da marcha em Paris
Tradução: Carolina de Assis
Matéria original publicada no site do jornal italiano Pagina99.
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