Um dos problemas de morrer é esse: vão falar muita asneira a seu
respeito. E você já nem pode se defender. Não bastou serem fuzilados, os
cartunistas do "Charlie Hebdo" foram vítimas de um massacre póstumo.
Pessoas de todas as áreas de atuação lamentaram a tragédia, MAS (não
entendo como alguém, nesse caso, consegue colocar um "MAS") lembraram
que o humor que eles faziam era altamente "ofensivo".
Poucas coisas irritam mais do que a vagueza desse termo "ofensivo"
quando usado intransitivamente. Ofensivo a quem? A mim, definitivamente,
não era. "Eles não deviam ter brincado com o sagrado", alegam alguns.
MAS (aqui sim cabe um "mas") o que define o humor é exatamente isso: a
brincadeira com o sagrado.
Discordo de quem pede respeito pelo sagrado. Para começar, acho que a
palavra respeito é uma palavra que não cabe. Uma vez, vi o Zé Celso
pedir a um jovem ator que não o tratasse por "o senhor", mas por "você".
O ator disse que não conseguia porque tinha muito respeito por ele. E
ele respondeu: "Não me interessa o respeito. O que me interessa é a
adoração.".
O espaço da arte não é o espaço do respeito, mas o espaço da subversão, ou então da reverência, do culto. Do respeito, nunca.
No mais, tudo é sagrado para alguém no mundo. A maconha, a vaca, a santa
de madeira, o Daime, Jesus e Maomé: tudo merece a mesma quantidade de
respeito, e de falta de respeito.
Esperava essa reação raivosa dos fanáticos religiosos. No Brasil, o
fundamentalista prefere os meios oficiais: não usa metralhadoras, mas
tem bancada no Congresso e milhões no exterior.
Muitos (dentre os quais o pastor Marco Feliciano) já externaram o desejo
de que o Porta dos Fundos "brincasse com islamismo pra ver o que é bom
pra tosse". Até nisso temos complexo de vira-lata: nosso fundamentalismo
tem inveja do deles.
O que nunca imaginei era que a mesma reação de "fizeram por merecer"
partiria da própria esquerda. Muitos condenaram as charges como sendo
islamofóbicas e lembraram que os imigrantes islâmicos já sofrem
preconceito demais na França.
Mas esses imigrantes não eram os alvos, definitivamente, do humor do
cartunistas assassinados. O embate não era entre franceses e não
franceses, mas entre humor e fanatismo.
O traço infantil talvez confunda o leitor desavisado, mas é bom lembrar
que as charges do "Charlie Hebdo" não tinham nada de ingênuas: eram
facas afiadas na goela do ódio.
As coletâneas de capas do semanário sobre islamismo fazem parecer que
esse era o grande tema do jornal. Não era. O jornal atirava para todos
os lados, mas o alvo preferido era justamente a extrema direita de Le
Pen –esse sim, islamofóbico.
Os chargistas que, mesmo ameaçados, não baixaram o tom, não devem ser
tratados como pivetes malcriados que "fizeram por merecer", mas como
artistas brilhantes que morreram pela nossa liberdade. Nosso dever é
continuar lutando por ela, sem fazer concessões nem perder aquele
ingrediente essencial: a falta de respeito pelo ódio.
A questão por trás disso tudo é a mesma de sempre: existe limite para o
humor? A questão é complexa, mas a melhor resposta parece ser a
seguinte: o limite está no objeto do riso. Rir de quem está por baixo é
covarde, rir de quem está por cima é corajoso. Deve-se rir do opressor, e
não do oprimido.
O problema é que essa resposta gera novas perguntas. Quem é o oprimido?
Quem é o opressor? Muitas vezes, essa distinção não é clara.
Uma dica: quando surgir a dúvida sobre quem é o oprimido e quem é opressor, em geral, o indivíduo que foi fuzilado é o oprimido.
Gregorio Duvivier é ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.
FOLHA
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