Há dois anos a doutora Dilma apareceu em rede nacional de televisão
anunciando que o Brasil entrara no paraíso do energia elétrica. Ela
disse coisas assim:
"A partir de agora a conta de luz das famílias vai ficar mais barata. É a primeira vez que isso ocorre no Brasil."
"Isso significa que o Brasil tem e terá energia mais que suficiente para
o presente e para o futuro, sem nenhum risco de racionamento, de
qualquer tipo de estrangulamento, no curto, no médio ou no longo prazo."
"Estamos vendo como erraram os que diziam meses atrás que não iriamos
conseguir baixar os juros e nem o custo da energia. Tentavam amedrontar
nosso povo."
Passados dois anos os juros estão onde estão, as tarifas de energia vão subir e o "risco do racionamento" está aí.
Com má vontade pode-se ver no pronunciamento da doutora uma sucessão de
lorotas. Com um pouco de boa vontade vê-se outra coisa, diferente e, sob
certos aspectos, até pior: a fé numa realidade virtual. Ela queria
baixar as tarifas e acreditava no que dizia, mas acreditava demais.
Bastava que tivesse evitado os superlativos, tais como "tem e terá
energia mais que suficiente", "sem nenhum risco (...) no médio ou no
longo prazo".
A doutora governa com três realidades. Na da racionalidade sabe
perfeitamente que não se deve dizer o que disse. Na da autoglorificação,
cria um mundo virtual. No campo da militância política, manipula a
fantasia compondo um conflito no qual apresenta-se como uma princesa
combatendo as forças das trevas que querem "amedrontar nosso povo". Isso
não é debate político, mas videogame.
É do embaixador Marcos Azambuja a explicação de que os diplomatas
produzem blá-blá-blás, mas não os consomem. Até que ponto a doutora
acredita nos seus blá-blá-blás, não se pode saber, mas sua fé na
fantasia é mais complexa que a pura enganação. É também um estado da
mente. Todo governante acredita demais no que diz, mas a água ferve
quando diz algo em que não pode acreditar. Por exemplo: não haverá
problemas com a energia "no curto, no médio ou no longo prazo".
O marqueteiro João Santana, cujas impressões digitais estão na fala do
paraíso energético, pode acreditar que Elvis Presley está vivo, mas a
doutora não podia acreditar no que disse. No seu depoimento ao livro do
repórter Luiz Maklouf Carvalho ("João Santana - Um marqueteiro no
poder"), ele diz que tem "uma relação misteriosa e cotidiana" com o
físico italiano Ettore Majorana. O baiano Santana tem um pé na ciência
política, outro no mundo mágico e vive bem nos dois. Sua fascinação pelo
caso de Majorana mostra como se pode ser feliz acompanhando ora a
razão, ora a fantasia.
ERRO
Estava errada a informação aqui publicada segundo a qual dos campos
africanos que a Petrobras vendeu metade de sua participação em 2013 saía
60% do petróleo que importa e 25% do que refina. Os erros eram dois: as
duas percentagens referiam-se à situação de 2013, quando deu-se a
venda, e não à de hoje. A percentagem do refino (25%) relacionava-se com
a processamento de petróleo importado, e não com o total do refino da
Petrobras, que é muito maior.
EREMILDO, O IDIOTA
Eremildo é um idiota e alistou-se para a batalha da comunicação da
doutora Dilma. Ouvindo seu discurso de terça-feira convenceu-se de que
vai tudo bem com o governo, menos o teleprompter que a ajuda a ler
discursos. Eremildo encanta-se com o estilo da doutora. Na noite de sua
reeleição ela foi a primeira candidata vitoriosa que se impacientou com
os aplausos da plateia.
LULA E DILMA
Mesmo pessoas que não acreditam na possibilidade de um rompimento entre
Lula e a doutora Dilma estão tensas com o tamanho da amargura que se
instalou entre os dois. Estão tensas, mas continuam achando que ambos
sabem que não existem sem o outro.
O POVO SABE
O Planalto e alguns governadores estão perplexos diante de um cenário no
qual terão que fazer racionamentos. Um diz uma coisa, outro diz outra e
frequentemente alguém está querendo empulhar a patuleia. Trata-se de um
problema inexistente. Nos últimos 50 anos os brasileiros já tiveram
seis moedas, falta d'água em diversas cidades, apagão no tucanato.
Aguentaram firme. A crise de hoje incomoda sobretudo porque os governos
mentem.
-
O MISTÉRIO DO SUMIÇO DE ETTORE MAJORANA
Na sua fala a doutora Dilma anunciou como política pública uma realidade
fantasiada. Com o caso de Majorana pode-se manipular fantasias e, para
quem está atrás de uma obsessão, é um prato cheio. Trata-se de um
mistério sem fim, mas é apenas um brinquedo pessoal. Majorana era um
físico italiano, da turma de Enrico Fermi, prêmio Nobel de 1938 e chefe
da equipe que em 1942 libertou a energia do urânio. Daí até a explosão
da bomba atômica sobre Hiroshima passaram-se três anos.
Majorana tinha 31 anos, e Fermi colocava-o na categoria dos gênios como
Isaac Newton e Galileu. Ainda criança, extraía raízes cúbicas de cabeça.
Misantropo e depressivo, sumiu em março de 1938. Estava na Sicília e
tomaria uma barca para Nápoles. Sumiu. Passaram-se 77 anos, e o enigma
persiste. Ele teria antevisto a bomba atômica, talvez até achado que
detinha seu segredo e matou-se. Ou saiu do mundo recolhendo-se a um
mosteiro. Um padre viu um sujeito parecido com ele pedindo abrigo. Teria
fugido para a União Soviética, pois anos depois outro físico da equipe
de Fermi sumiu e apareceu em Moscou. Duas pessoas juram que viram
Majorana depois do seus desaparecimento. Na mão do escritor Leonardo
Sciascia, isso valeu um grande livro. Há poucos mistérios melhores e o
lance do cientista que vê a bomba e some é de grande beleza.
Dois fatos simplificam a história. Quando ia de Nápoles para a Sicília,
Majorana mandou uma carta de despedida a um colega dizendo que tomara
uma decisão "inevitável" e que desapareceria. Noutra carta, aos pais,
pediu que não usassem luto por mais de três dias. No dia seguinte
escreveu um telegrama ao professor pedindo que desconsiderasse o assunto
e, numa nova carta, contou-lhe que "o mar me rejeitou". Comprou
passagem para a barca de volta a Nápoles e sumiu. Seu corpo nunca foi
achado.
De todas as hipóteses, a mais plausível é, de longe, que Majorana queria
matar-se na viagem de ida, desistiu, e matou-se na da volta.
Falta explicar por que estava com todo o dinheiro que tinha no banco e
por que viajou com o passaporte. Com a fantasia, ganha-se um grande
enigma para exercitar a imaginação. A "relação misteriosa e cotidiana"
de João Santana (ou de qualquer outro curioso) com Majorana é alimentada
por intrigantes conjecturas que não fazem mal a ninguém.
No caso do paraíso energético a doutora cometeu a imprudência de achar
que sua conjectura era uma verdade. Na Argentina garante-se que Majorana
morreu em Buenos Aires.
Elio Gaspari, nascido na Itália, veio ainda criança para o
Brasil, onde fez sua carreira jornalística. Recebeu o prêmio de melhor
ensaio da ABL em 2003 por 'As Ilusões Armadas'. Escreve às
quartas-feiras e domingos.
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