01 outubro, 2014

Superávit ou déficit primário?

A tese do artigo é que já estamos em uma situação de déficit primário. “Agradeçam” ao governo porque nós vamos pagar a conta.


Por Mansueto Almeida

O setor público, até agosto deste ano, apresentou um superávit primário acumulado em doze meses de R$ 47,5 bilhões (0,94% do PIB). Infelizmente, este número não é o valor correto do superávit primário sem truques. Neste valor há uma receita extraordinária de R$ 35 bilhões (0,7% do PIB) decorrente da arrecadação do leilão do campo de Libra (R$ 15 bilhões) e da receita do programa de renegociação de dívidas (R$ 20 bilhões), o Refis, de novembro de 2013.

Assim, como não haverá um campo de Libra para ser leiloado todos os anos e nem se espera que todos os anos o governo faça sucessivas renegociações da dívida das empresas, o superávit primário (sem receitas extraordinárias) nos últimos 12 meses foi de R$ 12,5 bilhões ou 0,25% do PIB. Mas será esse o valor correto do superávit primário? Não.

Em geral, no mês de abril de cada ano, o governo paga precatórios de pessoal e da Previdência. Neste ano, inesperadamente, o governo postergou esses pagamentos para depois das eleições. Esta é um conta perto de R$ 6 bilhões, que reduziria o superávit de 12 meses para R$ 6,5 bilhões (0,13% do PIB). Mas há ainda outras contas que estão sendo “penduradas”.

Um dessas contas é a equalização de juros, que é uma despesa primária, relativa às operações de subsídios no âmbito do Programa de Sustentação do Investimento (PSI) do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O Ministério da Fazenda concedeu a si mesmo uma moratória, por meio da Portaria 357, de 15 de outubro de 2012, que estabelece que os subsídios desse programa só passariam a ser devidos pelo Tesouro ao BNDES depois de 24 meses do término de cada semestre, a partir de abril de 2012. Quem não gostaria de fazer o mesmo!

Isso significa que os subsídios concedidos no ano passado e ao longo deste ano no âmbito do PSI não estão sendo pagos e serão plenamente assumidos pelo próximo governo. O último balanço do BNDES mostra que esses subsídios não pagos cresceram R$ 8 bilhões em 12 meses. Se estivessem sendo corretamente pagos, isso transformaria o nosso superávit primário de R$ 6,5 bilhões, calculado acima, em um déficit de R$ 1,5 bilhão (0,03% do PIB) nos 12 meses terminados em agosto.

Este seria finalmente o superávit primário livre de truques? Ainda não. Em agosto de 2013, o saldo de restos a pagar de despesas de custeio líquido de cancelamentos (retirando desta conta as transferências constitucionais), era de R$ 29,1 bilhões, valor que o governo estava devendo a seus fornecedores e aos bancos que concedem crédito subsidiado. Esse mesmo saldo passou para R$ 39,04 bilhões, em agosto deste ano, um crescimento de R$ 9,9 bilhões (exclusive PSI). Se retirarmos o crescimento dessa despesa não paga do cálculo do resultado primário de 12 meses, o seu valor passaria de um déficit R$ 1,5 bilhão para um déficit de R$ 11,4 bilhões (0,23% do PIB). Ainda nos resta uma última correção para a apuração correta e que envolve, novamente, o BNDES.

Desde 2009, o governo passou a se endividar para emprestar para bancos públicos, em especial para o BNDES, com o objetivo de fortalecer a atuação desses bancos. Mas há um segundo objetivo não declarado que é o uso recorrente do BNDES pelo Tesouro para elevar artificialmente o superávit primário.

O truque é deixar o BNDES carregar uma carteira bilionária de títulos públicos e lucrar com a diferença entre a taxa de juros de mercado que corrige os títulos públicos, a Selic (11% ao ano), e a taxa de juros de longo prazo (5% ao ano), que corrige a dívida do banco junto ao Tesouro.

Em 2006 e 2007, antes de ter início os empréstimos do Tesouro para bancos públicos, a carteira de títulos públicos do BNDES não passava de R$ 1 bilhão. Em 2012 e 2013, alcançou R$ 61,5 bilhões e, no final do primeiro semestre deste ano, R$ 78 bilhões.

Com uma carteira de títulos públicos dessa magnitude, o Tesouro não precisava ter emprestado ao banco os R$ 39 bilhões no ano passado e nem os R$ 24 bilhões aprovados este ano. Assim o fez para garantir que o banco mantenha um carteira considerável de títulos no seu ativo, aumentando o lucro, o pagamento de dividendos e o recolhimento de impostos, tais como Contribuição Social sobre o Lucro Líquido e Imposto de Renda Pessoa Jurídica.

É claro que a contrapartida dos dividendos e impostos pagos pelo BNDES, decorrente de aplicações em títulos públicos, é um custo maior do serviço da dívida. Mas a meta que importa é a do primário e não a conta de juros do setor público, o que incentiva o governo a fazer uso dessa contabilidade criativa.

Nos doze meses terminados em agosto, o BNDES pagou R$ 9 bilhões de dividendos ao Tesouro e ganhou mais de R$ 3 bilhões com o carregamento de títulos públicos. Sem esse truque, o lucro do BNDES e o pagamento de dividendos seriam pelo menos R$ 3 bilhões menores e, assim, o déficit primário de R$ 11,4 bilhões calculado acima passaria para, no mínimo, R$ 14,4 bilhões (0,3% do PIB).

Dado que a despesa pública é sempre maior no segundo semestre do ano e não teremos este ano receitas extraordinárias na mesma magnitude de 2013, o governo atual poderá até terminar o ano com um superávit primário próximo a 1% do PIB. Mas quando devidamente descontados os truques do lado da receita e da despesa, o resultado primário do setor público voltou a ser deficitário. A última vez que isso aconteceu foi na década de 1990, quando nossa carga tributária ainda era inferior a 30% do PIB e antes da renegociação da dívida dos Estados e municípios.

Isso tudo significa três coisas. Primeiro, a piora fiscal foi muito além do que o mais pessimista dos analistas esperava. Segundo, no momento que os truques contábeis cessarem ficará claro que o resultado primário do setor público voltou a ser deficitário. Terceiro, será difícil corrigir esta situação apenas com maior austeridade e controle do gasto público.




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