O uruguaio César Charlone fez história ao lado do brasileiro
Fernando Meirelles no cinema nacional. Há dez anos, os dois eram
indicados ao Oscar com o filme "Cidade de Deus" (2002). Ele, pela
fotografia. O brasileiro, como diretor. Até este ano, formaram uma
festejada parceria em longas como "Ensaio sobre a Cegueira" (2008) e "O
Jardineiro Fiel" (2005).
*
Desde março, Charlone, que também é diretor, deixou a O2, produtora de Meirelles. À repórter Eliane Trindade, definiu a saída como "um divórcio ideológico amigável".
Na eleição, fizeram opções opostas. Meirelles se engajou na campanha de Marina Silva e se coloca como anti-PT. Charlone defende a reeleição de Dilma Rousseff. "Nesse momento de debate político aquecido, fica difícil dividir. As posições estão acirradas. Não quero criar polêmica improdutiva com o Fernando, mas é necessário se definir."
*
"Sabe o que me incomoda e me chama muito a atenção?", segue o
uruguaio. "É esse ódio. Uma coisa que eu nunca tinha visto no Brasil. É
pior do que no tempo da ditadura. A turma que me rodeava não gostava dos
militares. Mas não era essa coisa de 'Dilma nojenta', esse ódio contra o
PT." Diz que um dos incômodos que tinha na O2 era o de achar que
Meirelles ajudava a alimentar o "ódio reinante" ao postar mensagens na
rede interna da produtora, lida "por jovens que o respeitam", com boatos
não confirmados sobre o ex-presidente Lula.
*
Meirelles falou sobre o "divórcio" à coluna, por e-mail. "Assim
como o César, fiz programas e campanha para o PT, mas me decepcionei com
a fisiologia, a falta de atenção com educação e meio ambiente, e não
votei mais no Lula. Não consigo ser pragmático a ponto de achar que
apoiar os Sarney ou os Barbalho possa ser um caminho para se chegar à
justiça social, mas sempre respeitei César e muitos outros amigos que
pensam que valem recuos táticos pelo fim desejado."
*
As diferenças entre os dois surgiram muito antes do período
eleitoral. Um dos pontos: o Bolsa Família. "Eu contei para o Fernando
que estou pesquisando para fazer alguma coisa sobre o resultado do
programa. E ele começou a meio que me encorajar para mostrar o Bolsa
Família como um recinto, um albergue de parasitas. Essa visão mais
neoliberal, não sei."
*
"Tive a felicidade de ir agora ao Nordeste. É um outro país", diz
o uruguaio, que vive há mais de quatro décadas no Brasil. "Falei com um
taxista orgulhoso de ver os filhos estudando e dessa coisa bonita de
inserção social que vivemos." Para ele, discussões sobre o Bolsa Família
deságuam em "ódio de classe, insultos, uma coisa lamentavelmente muito
mal informada e com pouca referência".
*
Meirelles diz: "Acho o Bolsa Família muito importante, só lamento
que tenha ficado estagnado ao invés de dar o segundo passo, que seria
criar condições para tirar os beneficiários da situação de
beneficiários. Da maneira que está, está se tornando cada vez mais um
clientelismo no modelo da velha oligarquia". O filme poderia ser da O2.
"Neste caso, iria sugerir que se fizesse o elogio e a crítica para não
correr o risco de virar chapa-branca. Tenho certeza de que o Cesar
saberá fazer isso."
*
O brasileiro explica as diferenças entre ele e o amigo: "Apesar
de ambos querermos exatamente as mesmas coisas para o país, César sempre
teve um lado mais alinhado à militância e sempre convivemos bem com
isso".
*
"Então, eu tenho 64 anos, sou filho da geração de 1968, onde a
política fazia parte do dia a dia", diz Charlone, por sua vez. "No meu
caso particular, meus pais se separaram por razões políticas. Ele era
embaixador do Uruguai no Chile quando [o general Augusto] Pinochet deu o
golpe [em 1973]. Minha mãe passou a ajudar os exilados uruguaios e meu
pai não concordava. O matrimônio, que já tinha fissuras, acabou de ruir.
Fora isso, no meu passado, um dos meus avós era ministro da
pré-ditadura, muito de direita. O outro fundou a Frente Ampla do
Uruguai, que é o PT uruguaio."
*
"Vim para o Brasil estudar cinema por motivos políticos. Sentia
que era mais um militante do que um cineasta", afirma. Trabalhou com
Renato Tapajós, cineasta ligado ao Sindicato dos Metalúrgicos na época
de Lula. A experiência rendeu o média-metragem "Nada Será como Antes.
Nada" (1985). "Fui coprodutor. É uma reflexão sobre o sonho, o
surgimento do PT."
*
Charlone afirma que sempre tentou introduzir "alguma pitadinha
sociopolítica" em seus trabalhos. "Eu, por exemplo, não quis fazer o
filme 'Domésticas' [2001] com o Fernando porque, como uruguaio, não
entendia o humor brasileiro, de tirar sarro das domésticas. Já em
'Cidade de Deus' tinha a ver denunciar aquela realidade."
*
Os antigos companheiros fazem questão de reafirmar que a amizade está acima das divergências.
*
"Tolerância é a palavra", diz Meirelles. "Discordar não afeta em
nada o carinho e a gratidão por tudo que ele me ensinou e entregou."
César Charlone retribui: "Somos amigos". O último trabalho juntos foi em
"Rio, Eu te Amo", neste ano.
*
Meirelles está rodando uma minissérie em Brasília e chegou a
sondar se Charlone poderia fotografar. "Ele disse que não estava nos
planos voltar para a fotografia por hora, mas que eu poderia contar com
ele se precisasse. Não foi preciso, mas fiquei bem feliz em confirmar
que posso continuar contando com seu talento." Charlone estava em NY na
semana passada para um novo projeto.
*
No segundo turno, a urna ainda os separa. Fernando Meirelles diz
que optou pela candidatura de Marina Silva no primeiro por ser ela a
única a enxergar que "o maior desafio da humanidade hoje é lidar com o
esgotamento dos recursos do planeta".
*
Agora, não declara voto. "Nenhum dos candidatos tem um programa,
ambos pedem para assinarmos um cheque em branco." Mas cita frase
atribuída a Eça de Queiroz: "Os políticos e as fraldas devem ser
trocados frequentemente e pela mesma razão".
*
Charlone segue fazendo "campanha" por Dilma no Facebook. "Luta de
classes não é insulto nem ódio. É uma realidade, meu chapa", dizia ele,
respondendo na semana passada a comentário na rede. "E ainda bem que
está aparecendo. Como emigrante, confesso que me irritava a passividade e
a 'cordialidade' do coitado do manobrista que ganha por mês o que
talvez alguns 'doutores' gastem numa garrafa do bom vinho que aprecias."
Como não se naturalizou, Charlone não pode votar no Brasil. "Tenho
quatro filhos, dois deles nascidos aqui. Eles votam por mim."
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O Blog Olhar de Coruja deseja ao novo Presidente Jair Messias Bolsonaro tenha grande êxito no comando do nosso País.