13 outubro, 2014

Antipetismo leva Fernando Meirelles a 'divórcio ideológico' com colega da O2

O uruguaio César Charlone fez história ao lado do brasileiro Fernando Meirelles no cinema nacional. Há dez anos, os dois eram indicados ao Oscar com o filme "Cidade de Deus" (2002). Ele, pela fotografia. O brasileiro, como diretor. Até este ano, formaram uma festejada parceria em longas como "Ensaio sobre a Cegueira" (2008) e "O Jardineiro Fiel" (2005).
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Desde março, Charlone, que também é diretor, deixou a O2, produtora de Meirelles. À repórter Eliane Trindade, definiu a saída como "um divórcio ideológico amigável".

Na eleição, fizeram opções opostas. Meirelles se engajou na campanha de Marina Silva e se coloca como anti-PT. Charlone defende a reeleição de Dilma Rousseff. "Nesse momento de debate político aquecido, fica difícil dividir. As posições estão acirradas. Não quero criar polêmica improdutiva com o Fernando, mas é necessário se definir."
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"Sabe o que me incomoda e me chama muito a atenção?", segue o uruguaio. "É esse ódio. Uma coisa que eu nunca tinha visto no Brasil. É pior do que no tempo da ditadura. A turma que me rodeava não gostava dos militares. Mas não era essa coisa de 'Dilma nojenta', esse ódio contra o PT." Diz que um dos incômodos que tinha na O2 era o de achar que Meirelles ajudava a alimentar o "ódio reinante" ao postar mensagens na rede interna da produtora, lida "por jovens que o respeitam", com boatos não confirmados sobre o ex-presidente Lula.
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Meirelles falou sobre o "divórcio" à coluna, por e-mail. "Assim como o César, fiz programas e campanha para o PT, mas me decepcionei com a fisiologia, a falta de atenção com educação e meio ambiente, e não votei mais no Lula. Não consigo ser pragmático a ponto de achar que apoiar os Sarney ou os Barbalho possa ser um caminho para se chegar à justiça social, mas sempre respeitei César e muitos outros amigos que pensam que valem recuos táticos pelo fim desejado."
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As diferenças entre os dois surgiram muito antes do período eleitoral. Um dos pontos: o Bolsa Família. "Eu contei para o Fernando que estou pesquisando para fazer alguma coisa sobre o resultado do programa. E ele começou a meio que me encorajar para mostrar o Bolsa Família como um recinto, um albergue de parasitas. Essa visão mais neoliberal, não sei."
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"Tive a felicidade de ir agora ao Nordeste. É um outro país", diz o uruguaio, que vive há mais de quatro décadas no Brasil. "Falei com um taxista orgulhoso de ver os filhos estudando e dessa coisa bonita de inserção social que vivemos." Para ele, discussões sobre o Bolsa Família deságuam em "ódio de classe, insultos, uma coisa lamentavelmente muito mal informada e com pouca referência".
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Meirelles diz: "Acho o Bolsa Família muito importante, só lamento que tenha ficado estagnado ao invés de dar o segundo passo, que seria criar condições para tirar os beneficiários da situação de beneficiários. Da maneira que está, está se tornando cada vez mais um clientelismo no modelo da velha oligarquia". O filme poderia ser da O2. "Neste caso, iria sugerir que se fizesse o elogio e a crítica para não correr o risco de virar chapa-branca. Tenho certeza de que o Cesar saberá fazer isso."
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O brasileiro explica as diferenças entre ele e o amigo: "Apesar de ambos querermos exatamente as mesmas coisas para o país, César sempre teve um lado mais alinhado à militância e sempre convivemos bem com isso".
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"Então, eu tenho 64 anos, sou filho da geração de 1968, onde a política fazia parte do dia a dia", diz Charlone, por sua vez. "No meu caso particular, meus pais se separaram por razões políticas. Ele era embaixador do Uruguai no Chile quando [o general Augusto] Pinochet deu o golpe [em 1973]. Minha mãe passou a ajudar os exilados uruguaios e meu pai não concordava. O matrimônio, que já tinha fissuras, acabou de ruir. Fora isso, no meu passado, um dos meus avós era ministro da pré-ditadura, muito de direita. O outro fundou a Frente Ampla do Uruguai, que é o PT uruguaio."
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"Vim para o Brasil estudar cinema por motivos políticos. Sentia que era mais um militante do que um cineasta", afirma. Trabalhou com Renato Tapajós, cineasta ligado ao Sindicato dos Metalúrgicos na época de Lula. A experiência rendeu o média-metragem "Nada Será como Antes. Nada" (1985). "Fui coprodutor. É uma reflexão sobre o sonho, o surgimento do PT."
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Charlone afirma que sempre tentou introduzir "alguma pitadinha sociopolítica" em seus trabalhos. "Eu, por exemplo, não quis fazer o filme 'Domésticas' [2001] com o Fernando porque, como uruguaio, não entendia o humor brasileiro, de tirar sarro das domésticas. Já em 'Cidade de Deus' tinha a ver denunciar aquela realidade."
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Os antigos companheiros fazem questão de reafirmar que a amizade está acima das divergências.
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"Tolerância é a palavra", diz Meirelles. "Discordar não afeta em nada o carinho e a gratidão por tudo que ele me ensinou e entregou." César Charlone retribui: "Somos amigos". O último trabalho juntos foi em "Rio, Eu te Amo", neste ano.
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Meirelles está rodando uma minissérie em Brasília e chegou a sondar se Charlone poderia fotografar. "Ele disse que não estava nos planos voltar para a fotografia por hora, mas que eu poderia contar com ele se precisasse. Não foi preciso, mas fiquei bem feliz em confirmar que posso continuar contando com seu talento." Charlone estava em NY na semana passada para um novo projeto.
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No segundo turno, a urna ainda os separa. Fernando Meirelles diz que optou pela candidatura de Marina Silva no primeiro por ser ela a única a enxergar que "o maior desafio da humanidade hoje é lidar com o esgotamento dos recursos do planeta".
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Agora, não declara voto. "Nenhum dos candidatos tem um programa, ambos pedem para assinarmos um cheque em branco." Mas cita frase atribuída a Eça de Queiroz: "Os políticos e as fraldas devem ser trocados frequentemente e pela mesma razão".
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Charlone segue fazendo "campanha" por Dilma no Facebook. "Luta de classes não é insulto nem ódio. É uma realidade, meu chapa", dizia ele, respondendo na semana passada a comentário na rede. "E ainda bem que está aparecendo. Como emigrante, confesso que me irritava a passividade e a 'cordialidade' do coitado do manobrista que ganha por mês o que talvez alguns 'doutores' gastem numa garrafa do bom vinho que aprecias." Como não se naturalizou, Charlone não pode votar no Brasil. "Tenho quatro filhos, dois deles nascidos aqui. Eles votam por mim."


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