A campanha chega ao fim com o grande debate
de hoje. Alguns temas ficaram de fora. Do Rio Piracicaba à nascente do
São Francisco, na Serra da Canastra, encontrei vestígios da grande seca,
talvez a maior dos últimos 50 anos no Sudeste. Ignoro o que os
candidatos pretendem fazer a respeito. Não falam em recuperação de rios,
fortalecimento dos comitês de bacia, nada que lembre uma política de
recursos hídricos. Apenas se culpam.
Não sei se todos têm a sensação de que há uma distância entre o País dos
debates e o da vida real. Creio que a distância às vezes é ampliada
pelo próprio debate, que deveria encurtá-la.
Jean Piaget escreveu muito sobre inteligência infantil. Ele descrevia um
tipo de linguagem que prevalece numa faixa de idade: a linguagem
egocêntrica. Nela não importa necessariamente fazer sentido, muito menos
comunicar-se com o outro.
Apesar dos debates sem mediação, foi impossível estabelecer um fio da
meada. Dilma comportou-se como se fosse uma candidata da oposição em
Minas Gerais. Após o debate no SBT sua memória falhou em alguns
momentos. Depois de tropeçar na palavra inequívoca, ela capitulou em
mobilidade urbana, pediu um pouco de água, sentou-se para descansar. O
que se passa no cérebro de Dilma, como se articulam nela uma camada do
córtex com uma região do hipocampo, criando ou embotando a memória, é
uma análise que farei depois de pesquisar o tema.
Dilma está se transformando numa equilibrista que entra em cena mesmo
sem ter completado o período de formação. No caso da Petrobrás, a opção
do governo era negar as denúncias: são apenas vazamentos clandestinos.
No campo do feminismo, Dilma projetou imagem dura ao ironizar o choro de
Marina Silva, bombardeada pelas mentiras do PT: o cargo de presidente
não é para coitadinhas, afirmou.
Quando soube que um ex-dirigente do PSDB, Sérgio Guerra, também foi
acusado de receber propinas no escândalo da Petrobrás, Dilma passou a
acreditar nas denúncias. E afirmou: houve desvios. O fluxo de denúncias
não acabara. Depois de Sérgio Guerra, aparecia em cena o nome de Gleisi
Hoffman, ex-chefe da Casa Civil no governo Dilma. Nesse caso, a
presidente voltou a duvidar e pedir precauções. Ficou evidente que as
denúncias valem quando envolvem o adversário, mas são levianas e
perigosas quando envolvem o governo.
Depois do piripaco de Dilma, Lula e outros insinuaram que Aécio agride
mulheres e isso pode ter influenciado a performance dela. Marina tinha
de apanhar sem choro, pois a "Presidência não é para coitadinhos".
O escândalo da Petrobrás, embora possa ter envolvido gente da oposição, é
de principal responsabilidade do governo. A empresa está sendo
investigada nos EUA. Lá, por exemplo, a lei é clara e responsabiliza
também os dirigentes da empresa, mesmo que não tenham tocado no
dinheiro.
O choro da Marina massacrada é fraqueza; a crise de Dilma, uma
consequência do machismo. Eles reinventam o mundo à sua maneira. Passada
a eleição, em vez de ficar remexendo a essência macunaímica do PT,
talvez fosse necessária uma avaliação mais profunda de como uma
experiência histórica termina na porta da delegacia.
Análises sobre a trajetória da esquerda no século passado ocuparam
grandes historiadores. Tony Judt dedicou parte de seu trabalho aos
intelectuais franceses e seus equívocos. No caso europeu, as hesitações
diante do stalinismo conduzem um dos fios da meada. Aqui, no Brasil, não
creio que o stalinismo tenha o mesmo peso. O fio da meada é a relação
com a ditadura cubana, a admiração por um regime falido e o silêncio
inquietante sobre seus crimes.
A trajetória da esquerda brasileira no governo mudou. Goulart foi
derrubado pelos militares que alegavam combater a subversão e a
corrupção. A corrupção era algo mais simbólico no seu discurso. Envoltos
na guerra fria, os militares queriam, principalmente, derrotar o
comunismo. Essa passagem de uma resistência à ditadura militar, o
trânsito das páginas políticas para as policiais, essa mudança de ala
nas penitenciárias é uma guinada na história da esquerda.
Tanto se falou em Goebbels, o homem da comunicação de Hitler, que a
tática de repetir a mentira passou a ser até elogiada por alguns. O
encontro da tática do PT com Goebbels não é acidental. Assim como o
encontro das Farc com o tráfico de drogas também não o foi.
Quando desaparecem os objetivos estratégicos, quando o único alento é
ganhar o poder, desaparece também a fronteira entre política e crime.
Não te prendem mais em quartéis, mas na delegacia da esquina; já não se
ergue o punho cerrado pelo futuro da humanidade, mas para garantir o
banho de sol; não se comemoram grandes viradas históricas, mas o
ingresso no regime de prisão albergue.
A transformação de uma força política num compacto muro de cinismo, o
trânsito de ideias, aparentemente, generosas para a delinquência
intelectual - tudo isso configura uma fascinante matéria de estudo.
Não sei se teria a isenção para cumprir a tarefa: ela mexe comigo, com a
história pessoal, com as ilusões que me moveram no século passado. Mas
alguém escreverá a história do nosso passado imperfeito, como Tony Judt
fez com a intelectualidade francesa do pós-guerra.
No continente já estamos no socialismo do século 21. Em Caracas não se
racionam mais os produtos básicos com cadernetas, mas com as impressões
digitais. De Cuba para a Venezuela houve um salto tecnológico no
interior do mesmo atraso.
Mas a sedução do modelo ainda não foi abalada na esquerda brasileira. O
verdadeiro século 21, de certa forma, não chegou. Quem sabe, domingo?
Um exame profundo dessa longa trajetória histórica pode começar, se o PT
perder. Se vencer, será preciso concentrar a energia na vigilância
cotidiana e preservar alguma esperança no Brasil.
Vitoriosos depois do assalto à Petrobrás, os petistas logo estariam sonhando com o assalto aos céus.
*Fernando Gabeira é jornalista
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