Paucorum improbitas est multorum
calamitas (a vilania de uns
poucos é a desgraça de muitos).
calamitas (a vilania de uns
poucos é a desgraça de muitos).
No âmbito social, as atuais crises
políticas e jurídicas têm causado insegurança ao cidadão comum, a
despeito da existência de leis protetivas — notadamente a Lei 8.429/1992
— e de mandamentos constitucionais dirigidos a tutelar a probidade no
ambiente da Administração Pública, de que é exemplo o artigo 37,
parágrafo 4º, da Constituição Federal.
Juridicamente,
as distintas interpretações sofridas pontualmente pela lei findam por
reduzir ainda mais a segurança que a ela incumbiria, o que, obviamente,
não interessa à sua vigência. Não se trata, no entanto, de mero
exercício criativo o reconhecimento da probidade como direito
fundamental.
Pelo contrário, esse pensamento se revela plenamente
compatível com as normas constitucionais brasileiras e demais regras e
princípios de hierarquias semelhantes.
Outrossim, o raciocínio não
banaliza o conceito e a abrangência dos direitos fundamentais. Sim,
porque a probidade é um direito tão fundamental que, possivelmente, sua
ausência suprimiria diversos outros direitos fundamentais dela derivados
e, inclusive, expressos na Constituição Federal de 1988.
A
Constituição, indiscutivelmente, tem como objetivo final a paz social.
Ora, normas são criadas para que a sociedade não pereça no caos
absoluto. Nesse sentido, leciona Dalmo de Abreu Dallari:
Como foi
dito anteriormente, não basta uma reunião de pessoas para que se tenha
por constituída uma sociedade, sendo indispensável, entre outras coisas,
que essas pessoas se tenham agrupado em vista de uma finalidade. E,
quanto à sociedade humana, que é a reunião de todos os homens e que,
portanto, deve objetivar o bem de todos, a finalidade é o bem comum[1].
Nessa
lógica, a teoria geral dos direitos fundamentais estabelece que tais
direitos constituem a essência da tutela da dignidade da pessoa humana,
isto é, existem para que o primeiro e último destinatário do ordenamento
jurídico, o homem, encontre o seu grau máximo de proteção. Por óbvio,
considerando esta descomunal relevância, não haveria lugar para os
direitos fundamentais, senão na Constituição Federal, considerada a lei
máxima[2].
É, igualmente, a compreensão de José Joaquim Gomes Canotilho:
A
densificação dos direitos, liberdades e garantias é mais fácil do que a
determinação do sentido específico do enunciado dignidade da pessoa
humana. Pela análise dos direitos fundamentais, constitucionalmente
consagrados, deduz-se que a raiz antropológica se reconduz ao homem como
pessoa, como cidadão, como trabalhador e como administrado[3].
Ademais, referem-se os direitos fundamentais, no ensinamento de José Afonso da Silva:
Além
de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a
ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para
designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e
instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna.
[...] Trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se
realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; [...] Devem ser,
não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente
efetivados[4].
Trata-se,
portanto, da primeira percepção de que a probidade administrativa já
consagra um direito fundamental: em ausente, o cidadão pode estar
fadado, sem exageros, à morte.
Ora, nesse contexto, pergunta-se:
como conferir ao cidadão os direitos fundamentais à saúde, à educação ou
à alimentação, por exemplo, quando o administrador pratica um ato de
desvio de verbas de tais setores, com o intuito de se enriquecer?
A
doutrina, por sua vez, sustenta que os efeitos da improbidade
administrativa são inconciliáveis com os objetivos fundamentais
previstos no artigo 3º da Constituição Federal[5].
Em
contraponto, há um rol de direitos fundamentais estabelecidos pela
Constituição Federal de 1988. Neste rol, não há a previsão do direito à
probidade administrativa, o que poderia indicar que o direito em tela
não seria um dos elencados como fundamental.
Contudo, o parágrafo
2º, do artigo 5º, da Constituição Federal, concede um desimpedimento:
prevê um canal constitucional pelo qual novos direitos fundamentais
poderão assim se confirmar, ante a permissividade expressa pela própria
Lei Maior.
Sobre a possibilidade de reconhecimento de novos direitos fundamentais, é o destaque de Paulo Gustavo Bonet Branco:
[...]
mais producente buscar, em cada caso concreto, as várias razões
elementares possíveis para a elevação de um direito à categoria de
fundamental, sempre tendo presentes as condições, os meios e as
situações nas quais este ou aquele direito haverá de atuar. [...] O
esforço é necessário para identificar direitos fundamentais implícitos
ou fora do catálogo expresso da Constituição[6].
Ainda
que o fundamento constitucional da probidade esteja deslocado de
aludido rol, mostra-se tecnicamente viável sua compreensão como direito
fundamental. É a posição de Mateus Eduardo Siqueira Nunes Bertoncini:
Tamanha
é a importância da probidade administrativa – direito público subjetivo
de caráter difuso pertencente à sociedade brasileira, que esse direito,
a nosso ver, possui a natureza de um direito fundamental, sendo o
centro, o âmago do microssistema jurídico em estudo, cuja extensão vem
se alargando[7].
De
acordo com o parágrafo 2º, do artigo 5º, da Constituição Federal, para
que a probidade administrativa seja considerada um direito fundamental, é
necessário que esta decorra ou do regime ou dos princípios que a Lei
Maior adota ou ainda de tratado internacional em que o País seja parte.
Em
primeiro, evidente a derivação da probidade administrativa dos
princípios adotados pela Constituição Federal de 1988. O caput do artigo
37, da Constituição Federal, obriga a Administração Pública a obedecer
os seguintes princípios: legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência.
Quanto ao dever de probidade, ensina Fábio Medina Osório:
Os
que estão sujeitos ao dever de probidade administrativa terão um
conjunto de deveres públicos — positivos e negativos — gerais e
especiais –, cuja concreção será imperiosa e obrigatória, de modo a
proteger o setor público, mais concretamente os valores neles abrigados.
[...] O mais importante é reconhecer, certamente, que sob o dever de
probidade administrativa encontraremos valores e princípios comuns às
Administrações Públicas democráticas[8].
Talentosamente, resume o panorama a preleção de Juarez Freitas:
[...]
direito fundamental à boa Administração Pública, que pode ser assim
compreendido: trata-se do direito fundamental à administração pública
eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com
transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à
participação social e à plena responsabilidade por suas condutas
omissivas e comissivas. A tal direito corresponde o dever de a
administração pública observar, nas relações administrativas, a
convergência da totalidade dos princípios constitucionais que a regem[9].
No
que diz respeito ao regime democrático brasileiro, a probidade, além de
compatível, é imprescindível à sua tutela, pois a escolha da
Constituição Federal de 1988 foi a implementação da “probidade na
Administração Pública, em todos os níveis”[10].
Assim
como a corrupção, a improbidade administrativa, ao se voltar contra a
própria dignidade da pessoa humana, constitui uma enfermidade que coloca
em perigo a preservação do regime democrático adotado pela CF[11].
Ademais, o princípio republicano “designa uma coletividade política da res publica,
vale dizer, é a sociedade que deve administrar a coisa pública” e
acarreta na “obrigação do agente público de prestar contas de sua
administração”[12].
Por
fim, a Constituição expressa que os tratados internacionais em que o
Brasil seja parte também poderão incluir outros valores fundamentais não
expressos na Lei Maior. Nessa esteira, valioso o ensinamento de Fábio
Medina Osório:
A corrupção tem sido um
dos temas centrais no processo comunicativo de globalização, unindo
esforços e energias internacionais, tanto para seu combate quanto para a
implementação, difusão e fortalecimento de ferramentas preventivas e de
diagnósticos precisos, visando objetivos comuns aos povos civilizados e
democráticos[13].
Efetivamente,
tratados internacionais foram firmados pelo Brasil, reforçando a
proposição em tela. Vale, nessa oportunidade, a síntese de Roberto Lima
Santos:
O Estado brasileiro é
signatário das seguintes convenções: (i) Convenção sobre o Combate da
Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais
Internacionais, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 125, de 14 de
junho de 2000, e promulgada pelo Decreto nº 3.678, de 30 de novembro de
2000; (ii) Convenção Interamericana contra a Corrupção, aprovada pelo
Decreto Legislativo nº 152, em 25.06.2002, e promulgada pelo Decreto nº
4.410, de 07.10.2002, sofrendo pequena alteração pelo Decreto 4.534, de
19.12.2002; e (iii) Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção,
aprovada pelo Decreto Legislativo nº 348, de 18.05.2005, e promulgada
pelo Decreto nº 5.687, de 31.01.2006[14].
Como
direito fundamental, a probidade administrativa permite, de um lado,
que a justiça seja acionada para impedir que a Administração Pública
fira a esfera individual do cidadão, exigindo-se que apenas atos probos
sejam praticados e, de outro, que seja consagrada como princípio
informador de todo o ordenamento[15].
Sendo
assim, a probidade administrativa passa a ter características próprias
de um direito fundamental, quais sejam: inalienável, imprescritível e
irrenunciável[16].
Vincula, ademais, os poderes públicos, tornando-se parâmetro “de organização e de limitação dos poderes constituídos”[17], isto é, “nenhum dos Poderes se confunde com o poder que consagra o direito fundamental, que lhes é superior”[18].
Por
fim — e o mais importante —, a probidade administrativa constitui uma
cláusula pétrea. Ou seja, veste-se de um valor irredutível, que jamais
poderá ser enfraquecido, nem mesmo com o surgimento de instante político
oportuno para minimizar sua incidência.
Isto porque “não se
infirma a fundamentalidade de um direito por sua difícil concretização.
Gradualmente, deve-se rumar para a efetividade, não se devendo desistir,
em momento algum, da reiterada e insistente proteção do direito
fundamental”[19].
Conclui-se, assim, com facilidade, ser a probidade administrativa um direito fundamental.
[1] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 25.
[2] MENDES, Gilmar Ferreira; GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 135.
[3] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993. p. 362-363.
[4] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 36. ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional n. 71, de 29.11.2012. São Paulo: Malheiros Editores, 2013. p. 180.
[5] BERTONCINI, Mateus Eduardo Siqueira Nunes. Ato de Improbidade Administrativa: 15 anos da Lei 8.429/92. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 141.
[6] MENDES; GONET BRANCO, 2015, p. 139.
[7] BERTONCINI, Mateus E. S. N. O microssistema de proteção da probidade administrativa e a construção da cidadania. p. 6. Disponível em: <http://www.ceaf.mppr.mp.br/arquivos/File/o_microssistema.pdf>. Acesso em 1º.mar.2017.
[8] OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa: má gestão pública – corrupção – ineficiência. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 105.
[9] FREITAS, Juarez. Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração Pública. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 22.
[10] BERTONCINI, 2007, p. 139.
[11] MIRANDA, Gustavo Senna. Princípio do juiz natural e sua aplicação na lei de improbidade administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 71.
[12] D'ANGELO, Suzi; D´ANGELO, Élcio. O princípio da probidade administrativa e a atuação do ministério público. Campinas: LZN Editora, 2003. p. 7.
[13] OSÓRIO, 2013, p. 28.
[14] SANTOS, Lima Roberto. Direito fundamental à probidade administrativa e as convenções internacionais de combate à corrupção. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 50, out. 2012. Disponível em: <http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm> <http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao050/Roberto_Santos.html>. Acesso em 1º.mar.2017.
[15] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. rev. e atual. de acordo com a Emenda Constitucional n. 76/2013. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 526.
[16] SILVA, 2013, p. 183.
[17] MENDES; GONET BRANCO, 2015, p. 147.
[18] Ibidem, p. 147-148.
[19] FREITAS, Juarez. Discricionariedade Administrativa: o controle de prioridades constitucionais. Disponível em: <http://www6.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/5131/2691>. Acesso em 1º.mar.2017.
REFERÊNCIAS
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______. O microssistema de proteção da probidade administrativa e a construção da cidadania. Disponível em: <http://www.ceaf.mppr.mp.br/arquivos/File/o_microssistema.pdf>. Acesso em 1º.mar.2017.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. rev. e atual. de acordo com a Emenda Constitucional n. 76/2013. São Paulo: Saraiva, 2014.
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MENDES, Gilmar Ferreira; GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 36. ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional n. 71, de 29/11/2012. São Paulo: Malheiros Editores, 2013
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